Prólogo
Provavelmente,
algo deve ter dado errado.
Provavelmente,
eu pensava isso todo dia. Achava que minha vida sempre estava fora do lugar.
Não tinha algo que se encaixava. Ah, claro, também tinha de suportar o fato de
me mudar pela quinta vez, o fato de meu pai me dar um nome ridículo, o sol
irritante que emitia luz que me perseguia sem nenhuma nuvem solidaria para
cobri-lo, e claro, o encarar das pessoas que enfrentarei no metrô.
Eu
não estava nem um pouco irritado com isso, mas algo insuportável era saber que tem
algo errado com você e não sabe o que exatamente é. Deixou de importar depois
de alguns anos, acho que ganhei confiança de que eu me conhecia muito bem e
aquilo era um sintoma comum de paranoia. Ou pelo menos algum sentimento ruim de
que algo que eu não ia gostar ia acontecer, o que realmente é verdade, algo
aconteceu e eu não gostei, mas não foi algo inesperado que me atrapalhou
bastante.
Claro,
a quinta mudança desde que mamãe morreu (embora nós só começamos a mudar de
casa repentinamente faz dois anos), isso tá sendo um pé no saco na escola,
sempre tem mais alguma classe de um novo colégio para me conhecer e me abusar
com o nome.
Gu
Okami.
Muita
gente pensa que tenho alguma ligação com lobos ou algo assim [1]. Sem falar
que tenho um nome de origem chinesa.
Meu
pai não tem culpa. Se eu me apresentar pessoalmente, vão rir de mim, mas a sala
obviamente tem um quadro, posso escrever meu nome lá. Não entendo o
porquê de eu ligar tanto com isso, eu ignoro muita coisa ruim da minha vida,
mas isso não.
De
qualquer forma, estão demorando em anunciar o trem. Quanto mais eu penso para
passar o tempo, mais lento o tempo passa. Uma checagem do que eu havia feito é
uma boa ideia, há algum tempo venho me lembrando da mudança, e o cumulo da
irritação foi ver um caminhão na frente, aquele barulho de motor com falha na
transmissão, e sempre um motorista gordo e fumante, se bem que não temos tanta
coisa a levar, não entendia a razão de o caminhão estar lá na mudança já que
era bem possível levar tudo no carro... Argh, não quero nem lembrar desses
momentos. Melhor rever o que vou fazer hoje, ver se está tudo bem. O que eu
tenho feito mesmo?
Muito
bem, um pouco depois do inicio das aulas, duas semanas após a mudança pra um
apartamento nos cantos dessa cidade, estou na estação esperando o trem chegar.
A nova cidade não me impressiona. A mesma coisa de qualquer outra cidade. Novas
pessoas a conhecer. Novos lugares para ir. Novos pontos de Wi-Fi para roubar a
senha. Novo tipo ar entupido de CO² para respirar. Novas pessoas irritantes que
te pedem algo com papeizinhos dizendo que têm algumas deficiências a aturar.
Novos motoristas de ônibus que em dias de chuva jogam poças de água na sua
cara. Normal como qualquer cidade (e tão entediante como qualquer outra). É,
claro, novo pessoal a conhecer... Eu devia omitir essa parte. Desde criança
tenho dificuldade de me relacionar com outras pessoas. Nem lembro mais o
porquê...
–
Aviso, trem se aproximando da linha três. Por favor, mantenham-se atrás da
linha branca.
Ah,
parece que finalmente chegou.
Meu
pensamento escondia meu ódio pelo tempo e a forma de como ele estava vagaroso.
Ou pelo menos tentava.
Droga,
de tanto esperar e pensar, acabei esquecendo algo.
O
trem já pode ser visto por quem está na plataforma e logo me levanto.
Me
esqueci daquilo... O que sempre acontecia no trem...
O
trem já avançara bastante, e diminui a velocidade.
Não
há como evitar... Vai acontecer de novo...
O
trem para e suas portas abrem, logo entro nele (assim como umas 23 pessoas que
estavam lá).
Depois
de um tempo eu estou em outra estação, bem na frente do trem, mas de costas
para ele. Já havia chegado. O trem começar a se mover e seguir em frente.
De
novo. Já esperava isso. Realmente não adianta. Não consigo me lembrar o que
aconteceu dentro do trem.
É
sempre a mesma coisa. Espera. Trem chega. Eu entro. Eu saio.
Nunca
me lembrava de algo lá. Como se eu nunca tivesse entrado em um desses vagões
prateados, que agora não estão tão prateados assim. Simplesmente minha mente
apaga lá dentro, e depois acordo na outra estação, justamente a estação que eu
devia estar, a mais perto do colégio onde vou passar a estudar. Ou pelo menos
algo assim.
Não
me irrito com esse fato, para falar a verdade, me sinto até aliviado por não
saber o que acontece dentro da uma lata que se move por aí, o que seria
entediante já que o percurso é longo e não tem nada de interessante lá, quem
sabe meu cérebro faça isso por considerar o que acontece no trem é inútil.
Deixando
isso de lado, me dirigi ao colégio. Atravesso duas ruas, viro uma esquina, e lá
está ele. Ao chegar ao portão, que obviamente estava aberto, eu hesitei um
pouco. Nos bons 4 segundos que estive parado, pensei sobre o que vou fazer
quando chegar lá.
Muito
bem, o colégio.
O
ambiente escolar pode ser tão intimidador quanto encorajador, principalmente na
primeira semana que você decide com quem vai ter laços de amizade, com quem
você deverá ter rivalidade sem motivo aparente e qual clube ou tribo você
deverá participar. Você fica, no máximo, uma semana sem falar com alguém caso
esteja em um colégio novo e não conheça ninguém, até que algum colega vai ficar
realmente interessado de onde você veio ou quem é você, ou talvez deboche de
você por ser tão isolado ou tão calado. O mínimo que você pode ficar sem falar
com alguém é cerca de 5 minutos após chegar à sala e sentar em sua carteira.
Mas o caso mais comum (e é claro, mais constrangedor) para ser apresentado à
sala é quando o professor te chama para frente e manda você escrever seu nome
no quadro e se apresentar à classe. Esse, provavelmente vai ser meu caso.
Em
todos os outros colégios para qual eu fui transferido, foi assim. “Temos um
aluno transferido, por favor, venha aqui na frente e se apresente”. Minha
certeza de que isso vai acontecer comigo também, não é porque todas as vezes
anteriores aconteceu. Isso seria uma suposição ridícula. Na verdade tenho
certeza que isso vai acontecer porque isso é uma coisa ruim para mim, e se há
uma chance disso acontecer, vai acontecer da pior maneira possível [2]. Além disso, eu não sei
o que vai acontecer lá. Em todo colégio pode ser uma reação ou tratamento
diferente.
Vai
saber.
–
Ei, garoto, você vai se atrasar.
O
porteiro. São bem simpáticos, principalmente os de hospitais.
–
Ah, desculpe, eu sou transferido de outro colégio. Bom, estou indo.
–
Espero que se acostume ao colégio.
Eu
também, oji-san. Pensando bem, ele não é tão velho assim. Ando em direção ao
prédio.
Em
uma esquina, onde é possível visualizar perfeitamente o portão do colégio onde
Okami estuda, uma pessoa de terno Armani, gravata, sapato social bem polido e
cabelo de empresário olhava para o Colégio. O estranho é que apesar de parecer
um empresário bilionário, não tinha carro nenhum o acompanhando, ou nem sequer
uma maleta. Apenas uma discreta escuta em sua orelha. O pulso da mão esquerda
dele está em um ângulo errado para um pulso normal estar, um ângulo que só se
coloca caso tenha algo fino como um minúsculo microfone que só agentes usam, o
que seria estranho, caso fosse um agente disfarçado já que é um disfarce
ridículo para usar. E de fato ele era um. Ele levanta levemente o pulso para
perto da boca e mexe um pouco com a outra mão, a seguir, diz algo em voz baixa.
–
Gu Okami, 16 anos. Tenho seguido ele desde a estação. Não parece ter qualquer
ligação com a empresa inimiga. Tenho um bom pressentimento sobre esse.
Possibilidade de ser DH: 67%.
[1] – Os kanjis do nome dele têm a mesma pronúncia de Lobo, e Gu é chinês.
[2] – Essa é considerada a Lei de Murphy, criada pelo engenheiro aeroespacial norte-americano Edward A. Murphy.
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